Manifesto do Coletivo do NESEF/UFPR em repúdio ao PL 6840/2013, em tramitação no Congresso Nacional

O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino de Filosofia – NESEF/UFPR, entidade de caráter público e interinstitucional que defende uma educação pública e gratuita extensiva a todos os cidadãos brasileiros, norteada por diretrizes e estratégias de emancipação humana, formação integral e autonomia intelectual, dirige-se, por meio deste manifesto, ao conjunto da sociedade paranaense e brasileira, a fim de demarcar seu posicionamento quanto às recentes investidas voltadas à reformulação do ensino médio.

 Nesse particular, destaca-se o Projeto de Lei 6840/2013, em tramitação no Congresso Nacional. Este PL, diferentemente de outros em trâmite no parlamento federal, conta com um grande leque de apoios partidários e institucionais. Com efeito, o empenho do Conselho Nacional de Secretários da Educação (CONSED), entidade de direito privado, foi fundamental para a formulação e difusão do discurso segundo o qual a maior urgência do Ensino Médio é a dareformulação do currículo.

Nós trabalhadoras/es em educação, sabemos bem que o currículo expressa a concepção da escola, mas isso não significa, em absoluto, que os problemas da educação nacional sejam originados pelo tipo de organização curricular. Os entraves à evolução qualitativa da Educação Nacional, muito além do currículo prescrito, são reconhecidamente outros, tais como: baixos salários, condições de trabalho,transito difícil, formação do professor, vida do estudante e esta não raro com expectativas e urgências dramáticas, processos democráticos precários em quase todas as instâncias educacionais, incluindo escolas, secretarias e conselhos.

O PL 6840/2013 éfruto daComissão Especial para Reformulação do Ensino Médio – CEENSI constituída oficialmente e, portanto, financiada com recursos públicos,sua tarefa foipromover estudos e proposiçõespara a reformulação do ensino médio. Apoiada, como mencionado, por diversas instituições e partidos, além de executivos estaduais. Anteriormente ao PL 6840/2013, a CEENSI produziu o Documento Orientador para os Seminários Estaduais[1], o qual teria sido amplamente divulgado nos estados da federação. O Documento Orientador traz a Proposta para Avanços no Ensino Médio do Conselho Nacional de Secretários de Educação, além de programas e projetos para o Ensino Médio em andamento no país.

Desse modo, a partir de pretensa legitimação social da proposta de reformulação do currículo, via “seminários”, conduzidos no âmbito dos governos estaduais e de “audiências públicas”, promovidas com convidados (governadores, secretários de educação e especialistas acadêmicos) no âmbito da Câmara dos Deputados, a CEENSI elaborou a versão final do texto do que viria ser o PL 6840/2013.

Destacamos, a seguir, alguns dos pontos da proposição que mais aviltam as/os que defendem o direito à educação pública, gratuita, laica e universal:

  1. A proposição, elaborada à revelia daquelas/es que cotidianamente vivenciam e estudam o contexto e os problemas do ensino médio, simplesmente desconsidera a história de lutas, o acúmulo de debates, as análises e os anseios dos coletivos e instituições que vem buscando alternativas para a Educação Básica como um todo. Mais: a proposta conta com o tradicional cinismo político, típico da disputa entre grupos hegemônicos, ao apresentar-se como alternativa para a democratização do ensino médio, quando na verdade compromete as poucas conquistas qualitativas socialmente construídas e potencializa a mercantilização dessa etapa de ensino, ao facultar à iniciativa privada a oferta de cursos e disciplinas, essas metamorfoseadas, como se fossem meros acidentes, em componentes curriculares.
  2. A proposição banaliza um dos principais objetivos da educação escolar, a socialização de conhecimentos – de conhecimentos referendados e que existem sob a forma de disciplinas organizadas –, ao mesclar diferentes campos epistemológicos, com os estatutos que lhes cabem, numa mesma área; assim como exorbita de suas atribuições ao definir que cursos de licenciaturas também abdiquem de suas especificidades em favor de áreas de conhecimentos. Sim, o PL suprime as atuais disciplinas com tradição curricular, amalgamando-as em quatro áreas de conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Esta nova estrutura, insistimos, além de atentar contra as disciplinas escolares, retrocede às já suficientemente criticadas experiências curriculares dos anos de 1990-2000, quando a banalização dos conteúdos comprometeu severamente a capacidade formativa da educação nacional pública. Com efeito, o retorno à transversalidade – inclusive com temas obrigatórios, sob medida para as “empresas” e suas parcerias com as escolas –,como estratégia de organização curricular contraria o Parecer 05/2011 e a Resolução nº 2 da CEB/CNE de 30 de Janeiro de 2012. Tais normativas buscam a garantia da qualidade da formação ofertada aos alunos do Ensino Médio e vinculam esta garantia à continuidade de estudos, bem como à organização curricular por disciplinas, respeitando o que estabelece a Lei 9394/96. Ocorre que, nesse PL, assim como em muitas falas governamentais, entre elas as que figuram no Programa Ensino Médio Inovador e no Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, os recursos metodológicos da contextualização e da interdisciplinaridade – recursos que pressupõem a disciplinaridade são confundidos com a mera invocação de conhecimentos reunidos em áreas gerais, como se conhecimentos disciplinados não tivessem nenhuma imanência, nenhuma lógica interna; como se, enfim, não tivessem sangue, nervos, músculos.
  3. No PL6840/2013 é indisfarçável a tentativa de escamotear o problema da falta de docentes com formação específica para as disciplinas em que atuam. Sabemos que as causas desse déficit encontram suas raízes, de um lado, no crônico desestímulo à carreira, na desvalorização dos profissionais da escola pública, e, de outro, na baixíssima oferta de cursos de licenciaturas que realmente formem professores nas disciplinas de tradição curricular. Sendo assim, a formação de professores em cursos de licenciaturas, cujos currículos e metodologias convirjam com as necessidades da Educação Básica, a concretização de carreiras, além de salários condizentes, que proporcionem tempo livre para leitura e/ou outras atividades culturais e para a preparação das aulas, que aportem recursos necessários ao estudo, à pesquisa, ao planejamento, em paralelo com uma maior permanência dos estudantes nas escolas –, são problemas cujo enfrentamento requer investimento público e ainda esforços conjuntos de governos, organizações civis e instituições acadêmicas. Ora, a pura e simples junção de diferentes disciplinas em áreas gerais, não passa de uma fuga sorrateira do problema para facilitar a distribuição das aulas em áreas supostamente afins àquelas em que os professores foram formados e, num futuro próximo, tende a diminuir a pressão por licenciaturas específicas, já que, na prática, bastariam quatro cursos de licenciaturas (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas) para suprir as múltiplas necessidades da Educação Básica!
  4. O PL prevê o Exame Nacional do Ensino Médio/ ENEM como componente curricular e dá normativas para seu novo formato, baseado na aplicação de provas por séries. Os proponentes não apresentam argumentos suficientemente razoáveis para esta mudança, mas é de se esperar que, – tal como hoje ocorre em relação ao Sistema Nacional de Avaliação e, onde existem, aos Sistemas Estaduais de Avaliação –, seja a avaliação que venha determinar a seleção de conteúdos. Mais uma vez a preocupação com “notas”, “índices”, “rankings” e “indicadores”, prevalece sobre a qualidade da formação ofertada pela escola pública.
  5. Outro problema, presente tanto no texto de justificação quanto no corpo de artigos do PL, diz respeito às definições dos cursos da Educação Profissional, integrada ou subsequente ao ensino médio. Nesse particular, é claro o incentivo às parcerias, sobretudo com as entidades do chamado Sistema S (SENAC, SESI, SESC, SENAR, SENAT, SEBRAE). Também é possível depreender da Proposta e dos seus Considerandos que as decisões sobre cursos a ofertar e em quais localidades, serão norteadas pelos requerimentos do mercado e dos empresários parceiros. Novamente, fica caracterizada a intenção de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada.
  6. Outro ponto a destacar, diz respeito à pretensão do PL em estabelecer que somente jovens com mais de 18 anos poderão cursar o ensino médio noturno. Ora, entende-se que, além do desconhecimento das dificuldades das famílias e das juventudes brasileiras, – da impositiva necessidade de ingresso precoce no mercado de trabalho –, a proposição exorbita, de muito, a extensão de seu poder, pois suprime aalternativa desse jovem já trabalhador de estudar à noite, ao mesmo tempo que constrange os maiores de 18 anos que podemestudar durante o dia. Nesse ponto, entendemos que o PL é francamente inconstitucional.
  7. A defesa da transversalidade como categoria norteadora da reorganização curricular do ensino médio por áreas de conhecimento, visando equacionar os problemas de aprendizagem e até do fracasso escolar é, no mínimo, falaciosa e não é apenas um duro golpe contra os estatutos disciplinares. É isto e muito mais, pois pensar o currículo sem disciplinas, substituí-las por áreas de conhecimento, é de uma irresponsabilidade total: as consequências serão logo sentidas tanto pelos alunos como pelos professores. Pelos alunos, porque assistirão a um rebaixamento verdadeiramente miserável do que lhes era ensinado, diminuindo por completo suas poucas chances de autonomia intelectual e de emancipação, condenando-os assim à invisibilidade e à irrelevância social. Pelos professores, porque reduzidos a operadores de transversalidades terão dificuldades imensas de preservar e organizadamente avançar na conquista de direitos, – direitos que sempre resultam em mais formação e com evidente incidência sobre seus alunos.

Assim, repudiamos o conteúdo e o espírito do Projeto de Lei 6840/2013, solicitando sua imediata retirada da pauta do Congresso Nacional.

Coletivo do NESEF/UFPR

Curitiba, meados de abril de 2014.

Seguem as assinaturas dos que participaram das reuniões para a elaboração do manifesto:

Ademir Aparecido Pinhelli Mendes; Alceu Cordeiro Fonseca Júnior; Alécio Donizete da Silva; Alessandro Aparecido de Oliveira; Alessandro Reina; Alessandro Vorossi Correia; Alvaro S.F. Baptista; Anita Helena Schlesener; Avanir Mastey; Ângela Cristina Ruiz; Bássima Ali Youssef; Carlos Nunes de Araújo; Carmen Lúcia Fornari Diez; Cristiane Gomes; Daniel Soczek; Danielle Kaminski; Danuska Brosin; Denilto Laurindo; Dinuel Fernandes de Campos; Dirceu Ferreira; Domenico Costella; Dorotea Trentini; Edimar Eugenio; Edmilson Feliciano Leite; Edna Ap. de Souza Harnish; Edson André Pegoraro; Edson Teixeira de Resende; Eduardo Legat Rodrigues; Elenita Castanho Mendes Steffen; Elizabete Luzia Garcia Amarcio; Emmanuel Appel; Eni de Fatima Zampiri; Érica Eugênica Possette; Eunice Elisabeth Zardo; Fabia Melissa Siqueira; Fabio Antúlio Stangue; Georgete M. Antunes Marin; Geraldo Balduíno Horn; Giselle Moura Schnorr; Gladys Marioto; Hilda Maria Zaneth Heller de Mattos; Ivone Rodrigues Macena Barossi; Jonas Ferreira de Andrade; Leandro Oebeck; Leila Athaide da Rosa; Luciana Vieira de Lima; Luciane A.S.L. Rodrigues; Luciene C. Imes Baptista; Lucrecio Sá; Luzia Maria Pereira; Marcelo Moraes; Marcia Elizangela Furini; Márcio Paludo; Maria do Socorro da Silva; Maria Inez Damasceno; Maria Lúcia de Andrade; Marilda Alberton Leutz; Marina de Oliveira Santos; Mayra Mugnaini; Mildre Meri Novakoski Margaridi; Naldemir M. Mendes; Nara Maria B. Posinato; Neusa Nogueira Fialho; Nicole Kollross; Nilce Ferreira Charneski; Nora H. Migliori; Otávio Tarasiuk Naufel; Rafael Pires de Mello; Ricardo Pozzeti Jr.; Roberson Melo; Rui Valese; Sandra Mara Monteiro; Sandra Maria Zago; Sidnei Martins; Silmara Quintino; Silvana Maria Biscalchim; Silvia Regina Santos dos Anjos; Soeli Cleonice Borox; Valéria Arias; William de Almeida e Wilson José Vieira.